Não sei se as
crianças entendem tudo…
Naquele dia eu
não percebi tudo mas soube que alguém fora injusto.
Era criança e
estava feliz porque me estava a ser dada a oportunidade de conhecer o alfabeto,
de ler, de aprender a fazer contas…Todo um mundo novo e bem mais feliz do que
aquele que conhecia.
A escola era o
lugar de conforto que não conhecia em casa. A escola ía permitir-me entender
tudo.
Porque eu era
criança e as crianças não entendem tudo…
Gostava tanto de
aprender coisas novas todos os dias. Infelizmente, nesse dia, aprendi também
que a covardia humana podia ter um rosto familiar.
Um dia que
começara por ser feliz. Feliz até ao momento em que cheguei a casa.
Era o álcool. Um
companheiro triste que acompanha os fracos.
Bebia não por
diversão mas por vício. Ou doença? Não sei…Sei que eram doentias as
desconsiderações, os gritos e os maus tratos. Não havia afeto, um gesto
carinhoso, uma palavra de conforto. Mas os gritos viviam connosco todos os
dias.
Não, não era por
diversão que bebia...
Um dia depois do
outro, uma ressaca que se “curava” em mais um copo de vinho…
Aqueles
fantasmas perseguiram-no e perseguiram-nos sempre. E ele tentava matá-los em
mais um copo de vinho. Não sabia que eles se alimentavam do líquido que lhe
enchia o copo e, por isso, continuava a ser um fraco.
A minha mãe
tentava ajudá-lo mas ele nunca foi capaz de aceitar a generosidade da sua
ajuda. Preferia sempre o copo que esvaziava de manhã à noite na tasca da
esquina.
Naquele dia, o
álcool voltou a ser o demónio que atormentava a nossa casa…
As crianças não compreendem
tudo…
E eu, adulta que sou, ainda
não compreendo.
Para quê a brutalidade? Para
quê a vassoura? De onde nasceu tanta raiva? Porquê castigar aqueles que ainda
nos desculpam e se interessam pela nossa existência? Porquê?
Tantas perguntas sem
resposta…
Questionei uma e outra vez a
minha mãe sobre o que motivou aquela situação e ela nunca foi capaz de me
descrever o que realmente se passara. Porque não tinha que existir um motivo,
não tinha que haver uma justificação. A violência era gratuita e injustificada.
Mas, acima, de tudo não era merecida.
Era a fraqueza daquele homem
que queria dominar, queria ser rei e senhor de um reino de terror.
Porque em mais lado nenhum a
sua voz era obedecida e, em casa (a nossa casa, o nosso refúgio e a nossa
prisão), o medo fazia-nos obedecer-lhe cegamente. E ele achava-se forte porque
não era contrariado.
Era um déspota e por isso
necessitava de uma vassoura para mostrar, mais uma vez, o quão fraco era.
Porque os fortes usam outras
armas. Os fortes lutam contra os seus fantasmas e crescem sem atropelar os
demais. Os fortes sabem ouvir um não sem se irarem. Os fortes sobrevivem à
adversidade da vida sem agredirem os outros. Os fortes crescem com os
trambolhões e ficam mais sábios com as más experiências.
Mas aquele não era um homem
forte. Aquele homem não cresceu e não aprendeu a digerir as frustrações.
E aquela era uma luta
desigual. Não era uma luta pela sobrevivência. Não havia justificação. Nunca
existe justificação para uma situação semelhante!
Infelizmente era o meu pai
aquela pessoa que agia de forma tão irracional e criminosa.
Acabara de chegar a casa. O
meu pai mostrara, mais uma vez, a monstruosidade dos actos que era capaz de
praticar.
Pediu-me que trouxesse um
copo de água. Disse-me que a minha mãe se sentia mal.
Sentia-se mal porque ele lhe
fizera muito mal. E ele sabia-o.
Fizera o mal e, mais uma
vez, ordenava que outros o reparassem.
Ferira-a mais uma vez. Ainda
hoje existem cicatrizes na memória desses momentos infelizes.
Era criança. As crianças não
percebem tudo…Mas isso eu percebia a brutalidade e a injustiça.
Ordenou-me que desse água à
minha mãe que jazia no chão frio e, como sempre, foi cobardemente matar aquelas
memórias afogando-as num copo de vinho. Mais uma vez se rendeu ao copo de
vinho.
Fiquei só com a minha mãe.
Na minha fraqueza de criança
tentei ajudá-la.
Mas as crianças não percebem
tudo…
Ou se calhar percebem… e por
isso tentei confortá-la.
Intimamente desejei que
soltasse amarras, arribasse a âncora que a prendia àquela infelicidade e nos
permitisse sermos felizes.
E, a cada gesto meu, a cada
afago, eu tentava mostrar-lhe que merecíamos viver fora daquela prisão, que
falar poderia ser uma arma bem mais forte do que aquele pau de vassoura que lhe
deixara hematomas nas costas e feridas profundas na memória.
Falar é uma arma.
Denunciar pode ser o início
da solução.
Hoje sei-o mais claramente. Naquela
altura sabia-o mas as crianças não percebem tudo…
Ou talvez percebam pois
sabem, como sei hoje, que : “A família deveria
ser um lugar de harmonia não de agonia.
(texto criado a partir do depoimento de uma formanda de uma turma EFA e que foi encenada e
apresentada à comunidade educativa a 18 de Fevereiro de 2011.