terça-feira, 25 de novembro de 2014

25 NOVEMBRO | DIA INTERNACIONAL PELA ELIMINAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES



Não sei se as crianças entendem tudo…
Naquele dia eu não percebi tudo mas soube que alguém fora injusto.

Era criança e estava feliz porque me estava a ser dada a oportunidade de conhecer o alfabeto, de ler, de aprender a fazer contas…Todo um mundo novo e bem mais feliz do que aquele que conhecia.
A escola era o lugar de conforto que não conhecia em casa. A escola ía permitir-me entender tudo.
Porque eu era criança e as crianças não entendem tudo…

Gostava tanto de aprender coisas novas todos os dias. Infelizmente, nesse dia, aprendi também que a covardia humana podia ter um rosto familiar.
Um dia que começara por ser feliz. Feliz até ao momento em que cheguei a casa.

Era o álcool. Um companheiro triste que acompanha os fracos.
Bebia não por diversão mas por vício. Ou doença? Não sei…Sei que eram doentias as desconsiderações, os gritos e os maus tratos. Não havia afeto, um gesto carinhoso, uma palavra de conforto. Mas os gritos viviam connosco todos os dias.
Não, não era por diversão que bebia...
Um dia depois do outro, uma ressaca que se “curava” em mais um copo de vinho…
Aqueles fantasmas perseguiram-no e perseguiram-nos sempre. E ele tentava matá-los em mais um copo de vinho. Não sabia que eles se alimentavam do líquido que lhe enchia o copo e, por isso, continuava a ser um fraco.
A minha mãe tentava ajudá-lo mas ele nunca foi capaz de aceitar a generosidade da sua ajuda. Preferia sempre o copo que esvaziava de manhã à noite na tasca da esquina.
Naquele dia, o álcool voltou a ser o demónio que atormentava a nossa casa…

As crianças não compreendem tudo…
E eu, adulta que sou, ainda não compreendo.
Para quê a brutalidade? Para quê a vassoura? De onde nasceu tanta raiva? Porquê castigar aqueles que ainda nos desculpam e se interessam pela nossa existência? Porquê?
Tantas perguntas sem resposta…
Questionei uma e outra vez a minha mãe sobre o que motivou aquela situação e ela nunca foi capaz de me descrever o que realmente se passara. Porque não tinha que existir um motivo, não tinha que haver uma justificação. A violência era gratuita e injustificada. Mas, acima, de tudo não era merecida.
Era a fraqueza daquele homem que queria dominar, queria ser rei e senhor de um reino de terror.
Porque em mais lado nenhum a sua voz era obedecida e, em casa (a nossa casa, o nosso refúgio e a nossa prisão), o medo fazia-nos obedecer-lhe cegamente. E ele achava-se forte porque não era contrariado.
Era um déspota e por isso necessitava de uma vassoura para mostrar, mais uma vez, o quão fraco era.
Porque os fortes usam outras armas. Os fortes lutam contra os seus fantasmas e crescem sem atropelar os demais. Os fortes sabem ouvir um não sem se irarem. Os fortes sobrevivem à adversidade da vida sem agredirem os outros. Os fortes crescem com os trambolhões e ficam mais sábios com as más experiências.
Mas aquele não era um homem forte. Aquele homem não cresceu e não aprendeu a digerir as frustrações.
E aquela era uma luta desigual. Não era uma luta pela sobrevivência. Não havia justificação. Nunca existe justificação para uma situação semelhante!
Infelizmente era o meu pai aquela pessoa que agia de forma tão irracional e criminosa.
Acabara de chegar a casa. O meu pai mostrara, mais uma vez, a monstruosidade dos actos que era capaz de praticar.

Pediu-me que trouxesse um copo de água. Disse-me que a minha mãe se sentia mal.
Sentia-se mal porque ele lhe fizera muito mal. E ele sabia-o.
Fizera o mal e, mais uma vez, ordenava que outros o reparassem.
Ferira-a mais uma vez. Ainda hoje existem cicatrizes na memória desses momentos infelizes.
Era criança. As crianças não percebem tudo…Mas isso eu percebia a brutalidade e a injustiça.

Ordenou-me que desse água à minha mãe que jazia no chão frio e, como sempre, foi cobardemente matar aquelas memórias afogando-as num copo de vinho. Mais uma vez se rendeu ao copo de vinho.

Fiquei só com a minha mãe.
Na minha fraqueza de criança tentei ajudá-la.
Mas as crianças não percebem tudo…
Ou se calhar percebem… e por isso tentei confortá-la.

Intimamente desejei que soltasse amarras, arribasse a âncora que a prendia àquela infelicidade e nos permitisse sermos felizes.
E, a cada gesto meu, a cada afago, eu tentava mostrar-lhe que merecíamos viver fora daquela prisão, que falar poderia ser uma arma bem mais forte do que aquele pau de vassoura que lhe deixara hematomas nas costas e feridas profundas na memória.

Falar é uma arma.
Denunciar pode ser o início da solução.
Hoje sei-o mais claramente. Naquela altura sabia-o mas as crianças não percebem tudo…
Ou talvez percebam pois sabem, como sei hoje, que : “A família deveria ser um lugar de harmonia não de agonia. 

(texto criado a partir do depoimento de uma formanda de uma turma EFA e que foi encenada e 
apresentada à comunidade educativa a  18 de Fevereiro de 2011.